BRASIL RESILIENTE!
A resiliência é uma capacidade universal que permite que uma pessoa, um grupo ou uma comunidade previnam, minimizem ou superem os efeitos prejudiciais da adversidade. A resiliência pode transformar ou fazer mais forte as vidas daquelas pessoas que são resilientes (The International Resilience Project)
Definition of resilience
"In the context of exposure to significant adversity, resilience is both the capacity of individuals to navigate their way to the psychological, social, cultural, and physical resources that sustain their well-being, and their capacity individually and collectively to negotiate for these resources to be provided in culturally meaningful ways" (www.resilienceproject.org)
A Associação Brasileira de Psicologia nas Emergências e Desastres foi fundada em 21 de setembro de 2012 e tenho a honra de fazer parte de sua primeira diretoria. Para saber mais, acesse o site: www.abrapede.org.br
O filme Residência Permanente (Honk Kong, 2009), que fala sobre a morte, prevê quem em 2032 as anfetaminas não precisarão de prescrição, sendo vendidas livremente em toda a Europa, provavelmente podendo ser compradas em supermercados.
O texto abaixo talvez indique que isso possa acontecer bem antes disso.Como a resiliência poderia dar conta de fazer com que as pessoas valorizem todas as suas experiências, positivas ou negativas, sem precisar se dopar para evitar o sofrimento necessário?
Permissão para ser INfeliz
A psicóloga Rita de Cássia de Araújo Almeida
conta como a demanda por felicidade vem crescendo nos serviços de saúde
mental da rede pública
Há alguns anos me pergunto se o “direito à felicidade”, que se tornou
uma crença partilhada tanto por religiosos quanto por ateus na nossa
época, tem sido causa de considerável sofrimento. Se você acredita que
tem direito à felicidade, de preferência todo o tempo, ao sentir
frustração, tristeza, angústia, decepção, medo e ansiedade, só pode
olhar para esses sentimentos como se fossem uma anomalia. Ou seja: eles
não lhe pertencem, estão onde não deveriam estar, precisam ser
combatidos e eliminados. O que sempre pertenceu à condição humana passa a
ser uma doença – e como doença deve ser tratado, em geral com
medicamentos. Deixamos de interrogar os porquês e passamos a calar algo
que, ao ser visto como patologia, deve ser “curado”, porque não faz
parte de nós. É um tanto fascinante os caminhos pelos quais a felicidade
vai deixando o plano das aspirações abstratas, da letra dos poetas,
para ser tratada em consultório médico. E, ainda mais recentemente, como
objeto do Direito e da Lei, inclusive com proposta de emenda
constitucional.
Quem acompanha esta coluna sabe que a felicidade tem sido um tema
assíduo. Acredito que poucos fenômenos são tão reveladores sobre a forma
como olhamos para a condição humana em nosso tempo como o “direito à
felicidade”. Sem esquecer que este tema está relacionado a outros dois
fenômenos atuais: a medicalização da vida e a judicialização dos
sentimentos. Ou, dito de outro modo: tratar o que é do humano como
patologia e dar aos juízes a arbitragem dos afetos.
É importante – sempre é – ressaltar que obviamente existem doenças
mentais e situações nas quais o uso de medicamentos é necessário e
benéfico, desde que com acompanhamento rigoroso. O que se questiona aqui
são os casos – infelizmente frequentes – de leviandade nos diagnósticos
psiquiátricos e o consequente abuso no uso de medicamentos, que tem
criado uma multidão de dependentes de drogas legais, cujas consequências
só serão conhecidas nas próximas décadas. É íntima a relação deste
fenômeno com a crença da felicidade que assinala nosso tempo.
Desta vez, convidei a psicóloga e psicanalista Rita de Cássia de Araújo
Almeida para falar sobre um recorte muito significativo: a crescente
demanda por felicidade no SUS. No texto de final de ano em seu blog,
ela abordava a “ditadura da felicidade” do ponto de vista de sua
experiência como trabalhadora da rede pública de saúde mental. Rita, 43
anos, é formada em psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora,
com mestrado em educação. Há 10 anos ela atua como psicóloga em CAPS
(Centros de Atenção Psicossocial), serviços estratégicos na área da
saúde mental. Atualmente, Rita trabalha no CAPS Leste, de Juiz de Fora, e
coordena o CAPS Casa Aberta, no município de Lima Duarte, ambos no
interior de Minas Gerais.
Nesta entrevista, ela toca em pontos importantes: o aumento do
sofrimento causado pelo imperativo da felicidade; a crescente demanda
por um diagnóstico de transtorno mental, com a consequente receita de
medicamentos; a transformação de momentos como luto, desilusão amorosa e
rebeldia juvenil em doença; a dificuldade cada vez maior de compreender
que sentimentos como tristeza, angústia, frustração, ansiedade e medo
dizem algo importante sobre a vida, que deve ser escutado e não calado.
Assim como a insônia e a falta de apetite nem sempre significam doença,
mas um aviso de que é preciso reformular algo no cotidiano.
Nos últimos anos, Rita e seus colegas perceberam que tinham uma nova
função ao acolher as pessoas que os procuravam na rede pública:
autorizá-las a serem infelizes. Isso deve dizer algo sobre todos nós – e
sobre nosso mundo.
Você atua na rede pública de saúde,
escutando pessoas que relatam dores psíquicas. Em seu texto de
despedida de 2012, no seu blog, você escreveu sobre a “ditadura da
felicidade”, apontando a diferença de queixa das pessoas nos serviços de
saúde mental nesta última década. Afirmou que hoje o pedido é por
“felicidade” – ou, dito de outro modo, teria se tornado impossível para
as pessoas sentirem-se “infelizes” ou conviver com alguém “infeliz”.
Como é isso?
Rita de Cássia de Araújo Almeida – Atuo na saúde pública, em
serviços do tipo CAPS (saúde mental) há 15 anos, sendo 10 deles como
psicóloga. E, sim, tenho percebido uma mudança na maneira como as
pessoas entendem a felicidade. Num passado não muito distante a
felicidade era um bem a ser conquistado, quase uma utopia. Hoje, as
pessoas se sentem na obrigação de serem felizes. A psicanálise entende a
nossa época como a “era do direito ao gozo”. Ou seja: hoje, todos têm o
direito de gozar plenamente, sem restrições. Nesse caso, a felicidade
deixou de ser uma contingência, um evento, e passou a ser um direito que
supostamente deveria ser garantido. Vivemos sob a ditadura da
felicidade, e, por isso, grande parte das pessoas tem dificuldade de
passar por momentos de infelicidade, de frustração e de perdas com
naturalidade, entendendo isso como parte da existência. O que você está dizendo é que o imperativo da felicidade, a obrigação de ser feliz, está provocando sofrimento?
Rita – Percebo que as pessoas, além de sofrer pelo motivo que
as levou a procurar ajuda, sofrem ainda mais pela angústia de ter que se
livrar daquele sofrimento rapidamente, a qualquer custo. Não
compreendem que aquilo que sentem pode ter um significado e um motivo
que precisam ser escutados, pela própria pessoa. Também sentem muita
necessidade de dar um nome para o que sentem. Querem logo receber um
diagnóstico.
Tenho alguns exemplos que, imagino, não fogem muito à realidade de
outros colegas trabalhadores da área. Um deles é quando alguém perde um
ente querido e a própria pessoa – ou alguém da família, ou até mesmo
outro profissional de saúde – solicita atendimento especializado pelo
fato de ele ou ela estar sofrendo ou chorando muito. Enterram o pai num
dia e querem estar prontos para ir ao cinema no fim de semana seguinte.
Temos também adolescentes encaminhadas à psiquiatria por estarem em
conflito com o namorado, assim como crianças indicadas por apresentarem
problemas de comportamento e dificuldades de aprendizagem.
Para os que não estão familiarizados com o fluxo de funcionamento da
atenção à saúde do SUS, precisamos abrir um parêntese para que entendam o
exemplo que vou dar a seguir. O sistema funciona, ou pelo menos deveria
funcionar, em rede. A atenção primária – o posto de saúde, unidade de
saúde ou estratégia de saúde da família – é a extremidade da rede mais
próxima do usuário. Portanto, é a primeira que ele procura quando
apresenta qualquer problema. O desafio da atenção primária é não
trabalhar em cima das especialidades médicas, mas intervir na pessoa
como um todo, tendo como diretriz a promoção e a prevenção da saúde.
Entretanto, a atenção primária pode, em casos mais específicos, nos
quais a intervenção do chamado especialista seja imprescindível, acionar
outros parceiros da rede que possam oferecer suporte. Os CAPS,
modalidade de serviço que trabalho, oferecem uma escuta especializada no
campo da saúde mental.
Certa vez, recebemos em acolhimento uma mulher, encaminhada por um
profissional da atenção primária do nosso território de atuação. Segundo
ele, esta mulher apresentava um quadro de insônia e delírio
persecutório. Numa escuta mais cuidadosa, soubemos que ela, na verdade,
estava insone por medo do marido, que ameaçava jogar água fervente em
seu ouvido enquanto ela dormia. Portanto, uma ameaça real – e não um
delírio de perseguição. Quando ela me disse que precisava de uma
consulta com um psiquiatra para que ele lhe desse um remédio pra dormir,
tive de perguntar a ela: “Um remédio? Para quê? Para a senhora acordar
com o ouvido queimado?”. Parece óbvio, mas ela não se dava conta de que
não dormir, no seu caso, era um sinal de saúde, era uma forma de se
proteger (do marido violento) – e não uma doença. Tivemos de autorizá-la
a estar com insônia e, obviamente, auxiliá-la a tomar outras
providências mais adequadas à situação.
“Estamos nos tornando uma geração de humanos que teme sua própria humanidade”
O que essa queixa de “infelicidade” diz da nossa época? O que ela oculta? O que revela?
Rita – Na verdade, o que causa infelicidade às pessoas não
mudou muito. Sofremos, em geral, pelo mesmo motivo apontado por Freud há
quase 100 anos. Sofremos, na imensa maioria das vezes, do mal-estar
resultante das nossas relações com os outros. Entretanto, percebo que
mudou muito a forma como as pessoas lidam com esse mal-estar, com sua
infelicidade cotidiana. Num passado não muito distante o profissional da
saúde mental era, em geral, procurado para ajudar a pessoa a
compreender seus mal-estares, decifrá-los. Hoje, um número cada vez mais
crescente de pessoas nos procura com um único objetivo: se livrar dos
mal-estares. Não querem saber nada sobre seus sofrimentos ou sobre sua
infelicidade, não desejam decifrá-los ou interrogá-los. Querem apenas
que o sofrimento e a infelicidade silenciem, e ainda demandam de nós uma
resposta rápida, eficaz e, especialmente, que não lhe exija muito
esforço. Estamos nos tornando uma geração de humanos que temem sua
própria humanidade. Vivemos numa sociedade que pretende negar e rejeitar
toda espécie de tragicidade que a condição humana carrega consigo.
O
que perdemos quando paramos de nos interrogar sobre nosso mal-estar com
o mundo? Ou sobre nossos conflitos, nossas angústias e ansiedades?
Rita – Para a psicanálise, nossos mal-estares são
oportunidades que temos para reconduzir e aperfeiçoar nosso processo de
subjetivação, de construção de nós mesmos, processo este que nunca
cessa. São esses mal-estares que nos fazem repensar nossos valores,
objetivos, nosso modo de ser e nossas relações. As lagartas, para se
transformarem em borboletas, precisam antes passar pela fase do casulo.
Se quisermos aproveitar esta metáfora para entender o processo de
subjetivação humano, diríamos que somos capazes de viver esse processo
de transformação um sem número de vezes. De lagarta para borboleta, de
borboleta para lagarta, e assim sucessivamente. Estas transformações,
por sua vez, só acontecem quando questionamos nosso modo de ser e de
estar no mundo. Quando paramos de nos interrogar, perdemos a
oportunidade de passar por essas transformações, ficando paralisados,
fixados em uma só condição: ou lagarta, ou borboleta. E é muito melhor
quando podemos aproveitar todas as possibilidades de estar nesse mundo.
Por que você acredita que paramos de nos interrogar? O que aconteceu? O que mudou?
Rita – A pressa talvez seja o sintoma mais evidente da nossa sociedade atual. Zygmunt Bauman (sociólogo polonês, autor de Modernidade Líquida, O Mal-Estar da Pós-Modernidade e Vida para Consumo,
entre outros) descreve muito bem nosso tempo. Ele diz que vivemos sob a
pressão de constantes mudanças, o que favorece uma cultura do
esquecimento, em vez de uma cultura do aprendizado e da lembrança.
Como eu disse, as queixas são as mesmas de 10 anos atrás, mas hoje é
cada vez mais comum que as pessoas procurem soluções fáceis e rápidas.
As pessoas não têm paciência e disposição para passar por tratamentos
longos, que exijam esforço e tempo. Outro dia, eu ouvi algo mais ou
menos assim, num atendimento: “Olha aqui, minha filha, eu não vim aqui
pra ficar de conversinha com você. Eu tenho depressão e preciso de um
remédio, porque esse que eu estou tomando não está valendo nada”.
O que você diz para uma pessoa que acabou de perder alguém que
amava, mas não quer viver esse luto? Ou acredita que não deveria estar
sentindo essa dor, ou até que é injusto sentir essa dor?
Rita – Percebo mais como se as pessoas não se sentissem no
direito de sofrer, não se sentissem autorizadas a serem infelizes, sabe?
Então, é interessante que muitas vezes tenhamos de intervir de modo a
autorizá-las a sofrer. Precisamos dizer a elas: “Olha, você acaba de
perder sua mãe, e, se você a amava, é normal que você sofra, que não
durma bem, que não queira se alimentar. Estranho seria se você quisesse
ir ao cinema logo depois do enterro. Então, vá para casa, chore, sofra,
viva seu luto, compartilhe-o com as pessoas que você ama e volte aqui na
semana que vem para conversarmos mais”. Alguns voltarão algumas vezes e
agradecerão depois por você não ter se aproveitado de sua fragilidade
momentânea para rotulá-lo com um diagnóstico psiquiátrico. Alguns não
voltarão porque buscarão outras soluções e modos de lidar com a perda.
Uma minoria voltará muitas vezes, porque aquela perda foi realmente
insuportável e quebrou a pessoa de tal maneira que a ajuda profissional
será fundamental para que ela consiga seguir caminhando. E alguns outros
não voltarão, porque irão procurar outro profissional que atenda o seu
pedido, que lhe dê uma anestesia, uma droga qualquer que faça calar seu
mal-estar. É claro que, lamentavelmente, encontrarão quem faça isso.
O tratamento, no caso, seria “autorizar” a pessoa a ser
“infeliz”? Ou a sentir frustração, tristeza, desânimo, ansiedade,
saudade, medo etc... ?
Rita – Sim. Para trabalharmos de forma ética, não temos de
dizer apenas o que a pessoa quer ouvir, mas, sobretudo, o que ela
precisa ouvir. Sendo assim, temos que, muitas vezes, desconstruir sua
demanda inicial, autorizando-a a sofrer, a ficar infeliz, a perder o
sono e o apetite, quando isso faz parte de um contexto normal de perda,
luto, fracasso, desentendimento familiar. Até para que a pessoa possa, a
partir daí, fazer perguntas sobre sua vida, suas escolhas, seu modo de
ser... No caso daquela mulher que não dormia por causa do marido que a
ameaçava, por exemplo, não medicá-la, não acabar com sua insônia, foi
fundamental para que ela pudesse questionar seu casamento, a posição
dela naquela relação, e possibilitar que ela pudesse fazer novas
escolhas e buscar outros caminhos.
Você poderia dar outros exemplos concretos da experiência no consultório?
Rita – Dias atrás recebemos em acolhimento um homem de meia
idade queixando-se de dificuldade para dormir e nervosismo. Ele queria a
receita de um remédio que já tinha usado uma vez e que, segundo ele,
foi muito bom. Ou seja, ele apresentou uma queixa e, em seguida, a
solução, tudo em poucos minutos. Tentando desacelerar sua pressa, como
deve ser a nossa conduta nesses casos, tratei de fazer as perguntas que
ele mesmo deveria estar se fazendo naquele momento. Como estava a sua
vida, a sua relação com o trabalho, com o lazer, com a família, o que o
deixava nervoso, o que pensava nas noites insones... Respondendo a estas
perguntas, ele confessou que, depois da morte da esposa, há alguns
anos, decidiu mergulhar intensivamente no trabalho, “para não pensar”.
Ele trabalha no trânsito, um local por si só muito estressante, cerca de
14 horas por dia, incluindo feriados e finais de semana, sem horário
certo para comer ou dormir. Não tem lazer, mora sozinho e não conseguiu,
desde a morte da esposa, se relacionar afetivamente. No decorrer da
nossa conversa, ele conseguiu perceber que, com a vida que estava
vivendo, era impossível que não estivesse insone e estressado. No final
da consulta, estava decidido a reduzir seu tempo de trabalho, a definir
horários regulares para comer e dormir, a voltar a fazer uma atividade
física e a programar seu lazer. Pedi que ele nos telefonasse em um mês
para dar notícias sobre as mudanças, se elas tinham produzido o efeito
esperado. Minha experiência me diz que, neste caso, conseguimos produzir
o efeito desejado: auxiliar a pessoa a sair de uma posição de paralisia
e impotência diante de seus sintomas.
Como é o método de trabalho nos CAPS? Há uma preocupação de que
as pessoas não sejam medicadas sem necessidade, quando, em muitos
casos, como você conta, a demanda é por um diagnóstico de transtorno
mental, com a consequente receita de pílulas? Ou, dito de outra forma,
como evitar que os CAPS virem fábricas de doentes mentais e dependentes
de drogas legais?
Rita – Como eu disse, o sistema público de saúde funciona em
rede. Os CAPS compõem o trançado da rede que oferece uma escuta
especializada no campo da saúde mental. Sendo assim, apesar de, em
alguns casos, recebermos demanda espontânea, o mais comum é recebermos
encaminhamentos dos demais parceiros da rede, em especial da atenção
primária. Ao chegar ao CAPS, a pessoa passará por um dispositivo chamado
“acolhimento”. Este é um dispositivo que deve ser utilizado por todos
os CAPS, uma diretriz para o que chamamos de “porta de entrada” do
serviço. Regular esta porta de entrada é fundamental para que os CAPS,
como você disse, não se transformem em fábricas de doentes mentais. O
acolhimento, como o próprio nome diz, é o momento em que a pessoa será
acolhida em sua demanda, será escutada com cuidado, sem pressa, em uma
ou mais entrevistas, por um ou mais profissionais do serviço, para que
se possa construir uma estratégia de intervenção. E a intervenção pode
ser, inclusive, desconstruir a demanda inicial pelo diagnóstico e pela
medicação, para incluir outras demandas, nas quais a pessoa pode atuar
como protagonista de sua própria história – e não como um mero usuário
de drogas legais, para usar suas palavras.
O “direito à felicidade” tem sobrecarregado o sistema público
de saúde? Qual é a sua experiência? É a maioria dos casos na área de
saúde mental?
Rita – O Ministério da Saúde, através da Coordenação de Saúde
Mental, tem passado orientações no sentido de evitar a psiquiatrização e
medicalização das situações cotidianas, obviamente por entender que
esse tipo de conduta é, na atualidade, uma realidade na saúde pública
brasileira. A Linha Guia de Atenção em Saúde Mental de Minas Gerais –
uma publicação da Secretaria Estadual de Saúde que define as diretrizes
da política de saúde do estado – alerta para o problema do uso
inadequado dos chamados benzodiazepínicos, comumente indicados como se
fossem uma fórmula mágica para solucionar problemas pessoais e
sociofamiliares. Os benzodiazepínicos – classe de medicamentos com
propriedades ansiolíticas, hipnóticas, anticonvulsivantes e
miorrelaxantes – estão entre os medicamentos mais prescritos no mundo e
inúmeras vezes de maneira inadequada. Geralmente, segundo essa Linha
Guia, são prescritos quando o médico se sente impotente diante das
queixas de seus pacientes. Hoje, o uso abusivo de benzodiazepínicos pela
população tornou-se um grave problema de saúde pública.
No nosso cotidiano de trabalho nos CAPS, especialmente no trabalho em
parceria com a atenção primária, onde podemos fazer um diagnóstico do
que leva as pessoas a procurarem tratamento em saúde mental, temos
percebido um aumento na demanda por psiquiatrização e medicalização dos
problemas cotidianos. O bom é que, na saúde pública, temos mais
liberdade de desconstruir esse tipo de demanda: com a pessoa que nos
procura, com a sua família e até com o colega profissional de saúde.
“Usamos o medicamento de forma correta e ética quando ele serve para a pessoa falar – e não para fazê-la calar”
O “direito à felicidade”, na sua opinião, tem levado então a uma maior medicação das pessoas?
Rita – Sim, sem dúvida. A maioria das pessoas que nos procura
quer ser medicada – diagnosticada e medicada. Querem um nome para a sua
doença e uma pílula milagrosa que resolva seu mal-estar. E, quando
dizemos a elas que o remédio não vai resolver seus conflitos familiares,
não vai solucionar seus problemas financeiros, não vai dissolver uma
culpa ou uma perda, assustam-se e ficam pensativas. Acho que as pessoas
realmente acreditam que há um remédio que solucionará isso para elas. E,
na verdade, elas não acreditam nisso por acaso. Elas acreditam porque
há um discurso, extremamente forte e presente em nossa sociedade,
alimentado principalmente pela indústria farmacêutica, que sustenta a
ideia de que é possível encontrar na prateleira da farmácia um remédio
para qualquer mal-estar que nos incomode. Este é um excelente exemplo,
na saúde, de quando a oferta gera a demanda. Existe demanda por
felicidade em pílula porque o multimilionário mercado farmacêutico
oferta esse tipo de solução.
Isso não quer dizer que os medicamentos psiquiátricos nunca devam ser
usados, que são um mal em si. A crítica que se faz é à medicação
excessiva e sem norteamento ético. O medicamento precisa servir para que
a pessoa fale, para que ela compareça – e não para que ela se cale, se
transforme numa morta-viva, num zumbi. Às vezes, a doença psíquica chega
ao ponto de impedir a pessoa de ir e vir, de se comunicar,
paralisando-a completamente, impedindo-a de fazer laços ou apagando a
sua subjetividade. Nestes casos, o medicamento pode e deve ser usado,
mas somente com o intuito de fazer com que a pessoa se movimente, fale,
compareça. Resumindo: no campo da saúde mental sabemos que estamos
usando o medicamento de forma correta e ética quando ele está servindo
para fazer a pessoa falar – e não para fazê-la calar.
Você acredita que existe diferença na demanda nos serviços de
saúde mental da rede pública e na demanda nos consultórios privados, com
respeito à felicidade e à forma como as pessoas se relacionam com dores
como frustração, angústia, tristeza, medo etc?
Rita – Eu sou uma entusiasta defensora do nosso sistema
público de saúde – o SUS. Na minha opinião, deveríamos ir às ruas
levantando bandeiras para exigir financiamento adequado e melhores
condições para os seus trabalhadores. E, dentre os inúmeros motivos que
me fazem defender esta proposta, vou dizer apenas um que considero
fundamental. O melhor sistema de saúde privado que poderíamos conceber
não é capaz de fazer uma coisa que só o SUS pode fazer: intervir sem
estar submetido à lei de mercado ou à lógica do consumo. Não podemos
negar que a medicalização dos nossos problemas cotidianos faz muito bem
ao desenvolvimento da indústria farmacêutica – e só o SUS é capaz de
manter uma distância segura dessa influência.
Além disso, no SUS, podemos com mais tranquilidade desconstruir a
demanda por uma especialidade ou por uma intervenção específica, pelo
próprio sistema de rede. Na rede privada ou conveniada, qualquer um de
nós pode, a qualquer momento, marcar uma consulta com qualquer
especialista, mesmo que não haja nenhuma indicação para tal. Só isso já
aumenta muito a probabilidade de uma pessoa ser diagnosticada e medicada
sem o cuidado necessário – algumas vezes por uma falta de cuidado ético
do profissional, em outras vezes pela própria pressão do usuário em ser
atendido no seu pedido. Especialmente porque, no setor privado, o
usuário é, na verdade, um cliente. E sabemos que, na sociedade de
consumo, o cliente sempre tem razão.
De certo modo, você percebe na sua prática clínica cotidiana
que tudo o que é do humano virou patologia. De novo, o que isso revela? E
o que isso causa?
Rita - Sim, hoje, tudo o que nos torna humanos é passível de
ser diagnosticado e medicado. Acho que isso revela que nós nos tornamos
uma sociedade extremante “careta”. Careta no sentido de ser capaz de
interpretar todo o tipo de transgressão ou de atitude fora do padrão
como um provável transtorno mental a ser diagnosticado e tratado. Ou
seja: normatizado. Tenho 43 anos e três filhos, dois deles adolescentes
de 17 e 15 anos. Quando eu tinha a idade deles, uma atitude qualquer que
eu cometesse, fora das normas e das regras, era tratada como uma
transgressão, apenas. E tínhamos certo orgulho da punição que
recebíamos, já que ela era como um troféu e também uma espécie de acerto
de contas, que nos autorizava a transgredir novamente. Já meus filhos
não têm a mesma sorte que eu tive. Precisarão de muito cuidado para
escolher seu modo de transgredir, pois, ao invés de ser entendido como
um ato de rebeldia ou travessura adolescentes, pode ser interpretado
através de um diagnóstico psiquiátrico, condenando-os assim a um
tratamento psicológico ou medicamentoso. Acho isso uma grande caretice.
Vivi recentemente uma situação no mínimo inusitada, que retrata bem o
que estou dizendo. Uma mãe nos procurou no CAPS com seu filho
adolescente de 15 anos. Demandava uma avaliação psiquiátrica para ele.
Nos CAPS em que trabalho, temos como protocolo que o acolhimento seja
feito por outro profissional, que não o médico, exatamente para esvaziar
essa demanda imediata pelo medicamento. Eu, então, fui fazer o
atendimento com mãe e filho. Segundo o relato da mãe na consulta, o
rapaz estava repetidamente se envolvendo em atos delinquentes. No último
deles foi punido pela Justiça e condenado a uma pena alternativa, pelo
fato de ser menor de idade. A mãe queria que descobríssemos qual
transtorno mental seu filho tinha. Transtorno este que, supostamente,
estaria fazendo com que ele tivesse aquelas atitudes. Em seguida,
assisti a um bate-boca inusitado entre mãe e filho. Ela tentando me
provar que ele tinha uma doença mental ou que estava sob o efeito de
alguma droga, enquanto ele afirmava que seu comportamento nada tinha de
patológico, já que ele tinha plena consciência de seus atos, estava no
seu juízo perfeito e não cometeu os delitos sob o efeito de drogas.
Enquanto a mãe queria que eu rotulasse o filho com algum diagnóstico, o
filho tentava dizer a ela que infringiu a lei conscientemente e
pretendia pagar pelo seu ato ilícito. Naquele momento, fiquei com muita
pena daquela mãe tentando desesperadamente transformar o filho num
doente mental, mas, ao mesmo tempo, também fiquei com pena daquele
menino que queria apenas ser tratado como um rebelde, um fora da lei – e
não como um doente. Vivemos tempos estranhos...
E por que vivemos tempos estranhos?
Rita – O estranhamento é exatamente a sensação que temos
quando percebemos uma mudança que ainda não compreendemos totalmente.
Acho muito estranho que alguém prefira ter um filho portador de
transtorno mental a ter um filho que transgrediu a lei. Acho estranho
que todas as nuances do comportamento humano sejam passíveis de serem
nomeadas e medicalizadas. Ou seja: passíveis de normatização.
“Estamos produzindo uma geração de jovens que se quebram ao menor arranhão”
Como a questão do “direito à felicidade” se manifesta na relação entre pais e filhos? E qual é o papel do consumo nessa relação?
Rita – Você já trouxe alguns textos
com esse tema aqui na sua coluna. Hoje, toda criança já nasce gozando
do direito pleno e irrestrito à felicidade. E assim sendo, as crianças
não precisam mais lutar por ela ou desejá-la. Se a felicidade é um
direito, cabe a elas tão somente se queixarem ou cobrarem quando esse
direito não está sendo atendido. E os pais têm sido os mais cobrados
para fazer valer esse direito. Os filhos dessa geração exigem que seus
pais os façam felizes, que não os frustrem e, o que é pior, vemos muitos
pais completamente perdidos, acreditando que serão mesmo capazes de
ofertar felicidade plena aos filhos, ou que poderão atender ao
imperativo de nunca os frustrarem. Por isso os pais de hoje têm tanta
dificuldade em dizer “não”.
Vou dar um exemplo extremo desse medo dos pais. Há cerca de quatro
anos, fui procurada por uma mãe em meu consultório particular, que
queria atendimento para o filho. Sua queixa era a de que este filho, de 9
anos, voltara a fazer “cocô na calça”. Fiz algumas entrevistas iniciais
com a mãe, para avaliar melhor a demanda, antes de pedir que ela
trouxesse o menino. A mãe me explicou que o filho sujava a calça com
frequência, especialmente em momentos nos quais a família estava fora de
casa, em alguma atividade social – um aniversário, um passeio, um
jantar. Ela contou que já estavam evitando sair de casa por causa do
comportamento do filho. Perguntei, então, se ela já tinha questionado o
filho sobre o motivo que o levava àquele comportamento. Essa mãe me
respondeu: “Claro que não!”. Confessou-me que ela e o marido jamais
falavam do assunto na presença do menino. Segundo ela, para não
traumatizá-lo. Explicou que ela e o marido, nesses eventos sociais,
ficavam sempre atentos e, diante de qualquer “cheiro estranho”, pegavam o
filho e saíam imediatamente do local. Sem falar nada com ele sobre o
episódio, levavam o menino para casa, lhe davam banho e trocavam sua
roupa. Em seguida, continuavam agindo como se nada tivesse acontecido.
Este é um caso extremo, mas vemos muitas outras atitudes, não tão
incomuns como esta, sendo repetidas pelos pais de hoje, tudo para poupar
o filho de uma possível frustração.
Temos tratado nossos filhos como se fossem peças de louça muito
delicadas. Ao condená-los à felicidade ampla, geral e irrestrita,
estamos produzindo uma geração de jovens extremamente frágeis e
imaturos, que se quebram ao menor arranhão.
Obviamente a sociedade de consumo se aproveita muito disso. Temos
filhos querelantes, que sabem como ninguém exigir seu “lugar ao sol”.
Ou, adaptando o termo ao discurso capitalista, temos filhos que sabem
como ninguém exigir a mercadoria que lhes convêm na prateleira. E temos
pais que temem dizer “não”, pois não querem frustrar ou traumatizar seus
filhos. Junta-se a isso uma sociedade que mede o grau de felicidade das
pessoas pelo tanto de coisas, bens ou serviços que elas são capazes de
consumir e chegamos a uma combinação perfeita. Que mais a sociedade de
consumo pode querer?
O “direito à felicidade” tem
permeado as relações na sociedade brasileira – assim como no Ocidente,
em geral. No Brasil, inclusive, tem sido tema tanto do judiciário quanto
do legislativo, até com proposta de emenda constitucional. Por mais que
as intenções sejam boas e aparentemente são, a felicidade como direito
fundamental é no mínimo questionável. Que tipo de consequências da
suposta garantia do “direito à felicidade” já testemunhamos e quais
ainda podemos esperar?
Rita – Penso que a felicidade deveria ser um tema tratado
apenas pelos poetas, músicos, escritores. Trazer o tema da felicidade
para o campo da razão, para o campo jurídico ou científico, é um
equívoco. A felicidade é um tema subjetivo. Sempre que tentamos
circunscrevê-la com algum discurso burocrático, tendemos a formatá-la
num padrão ideal, num modelo que sirva para todos. E não existe um ideal
de felicidade, cada um de nós irá percebê-la ao seu modo.
Além das consequências que já citamos aqui, existe uma outra, tão
empobrecedora para a nossa subjetividade quanto a medicalização do
sofrimento cotidiano, que é a judicialização da vida. O que também já
está acontecendo com frequência.
Nossos pais não nos amaram o suficiente? Fim de um relacionamento
amoroso? Traição de um amigo? Dificuldades com o chefe? Diante de alguns
destes problemas, mesmo os mais corriqueiros, bastará que entremos na
Justiça para cobrar uma reparação, nem que seja financeira. Ou seja,
quando a felicidade for uma espécie de direito constitucional, poderemos
também resolver nossas infelicidades nos tribunais. E assim seremos
finalmente considerados incapazes de resolver por nós mesmos nossas
frustrações e dificuldades de relacionamento.
O que você entende por felicidade?
Rita – Como disse, prefiro deixar este tema para o campo das
artes. Não há como entender a felicidade com a razão, não é possível
mensurá-la ou pensá-la como um modelo que valha para todos, todo o
tempo. Se estamos numa relação atribulada, felicidade pode ser um
momento de solidão. Se estamos solitários, felicidade pode ser receber
um telefonema. Guimarães Rosa, na pele de Riobaldo, diria assim: “No
sertão, até enterro simples é festa”.
A sensação de felicidade é uma experiência singular, única para cada
pessoa. Acredito que o desafio atual seja pensar um projeto coletivo
capaz de trazer esse tema para a pauta, mas não para o campo da lei, da
burocracia, da simples garantia de direitos, ou da ciência – mas, quem
sabe, para o campo da ética. No campo da ética, as pessoas podem
entender que elas também têm o direito de ficarem infelizes, que
infelicidade não é doença, mas parte da condição humana – e que, sem
ela, perdemos metade da nossa humanidade.
Qual é a importância da infelicidade?
Rita – Acredito que, em tempos de ditadura da felicidade,
respeitar e autorizar essa infelicidade nossa de cada dia é uma forma de
resistência, uma espécie de libertação.
Os desastres causam
um alto custo social e econômico às sociedades. Reduzindo a exposição e
adotando novas estratégias para aumentar a resiliência, esses custos podem ser
reduzidos.
A
responsabilidade pelo manejo dos riscos para os desastres não está somente nas
mãos de gestores de desastres. É, na verdade, uma preocupação de todos – de
cidadãos que deveriam estar mais empoderados para tomar decisões de como
reduzir os riscos, a líderes políticos, instituições governamentais, setor
privado, sociedade civil organizada, entidades de classe e instituições
tecnocientíficas.
O background cultural (crenças, atitudes,
formas de ver o mundo) de uma pessoa exerce um papel essencial na sua
habilidade e nas formas de enfrentamento que ela colocará em prática ao
vivenciar situações traumáticas (trauma entendido aqui como resultado de uma
constelação de experiências de vida vividas numa condição estressante persistente
ou como um evento agudo). Por sua vez, cada cultura e cada sociedade colocam à
disposição das pessoas dispositivos de compreensão, avaliação e possibilidades
de lidar com situações altamente estressantes, diminuindo as probabilidades de
elas provocarem traumas. Haverá então um entrecruzamento desses dispositivos
sócio-culturais com as predisposições individuais para permitir que a pessoa supere
esses momentos estressantes. Essa capacidade de lidar de forma adequada com
situações que transbordariam a capacidade da pessoa de suportar uma situação
ameaçadora e ainda sair fortalecido dela chama-se resiliência, que pode ser
construída a partir desses dispositivos sócio-culturais.
Conjugada com as questões sócio-culturais, uma
série de fatores psicológicos contribui para a boa adaptação de uma pessoa à
adversidade. Eles incluem as percepções individuais e o comprometimento
pessoal, a busca individual pelos recursos sociais e as estratégias individuais
específicas de enfrentamento.
Os modelos de crenças determinantes para uma
pessoa podem ser estruturados desde a infância, com base nas experiências
vividas. A organização do processamento das informações no momento da situação
de risco influencia de forma decisiva os estilos comportamentais, assim como a
maneira como as pessoas creem acaba definindo como irão se comportar em certas
situações, por exemplo, como será seu comportamento quando enfrentarem desafios
no trabalho, na família, na escola ou nas diversas posições que assumem na
vida.
Portanto, resiliência é um produto interativo
dessas crenças, atitudes, abordagens, comportamentos vivenciados pelas pessoas
em determinadas culturas, que podem ajudá-las a se sair melhor em situações de
adversidade e se recuperarem mais rapidamente. Pessoas resilientes são mais
flexíveis durante as condições de estresse e costumam retornar mais rapidamente
aos níveis de funcionamento psicológico e social anteriores ao infortúnio. No
entanto, ser resiliente não significa que as asperezas da vida não serão
complicadas e preocupantes; significa que esses eventos são superáveis, com maior
ou menor facilidade.
O conceito de resiliência apresenta duas
dimensões: uma força inerente ao sujeito (indivíduo, família, comunidade) para
melhor resistir ao estresse e ao choque e a capacidade desse sujeito se recuperar
rapidamente desse impacto. O aumento da resiliência pode, dessa maneira, ser
alcançado tanto pelo incremento dessa força interna (e ao mesmo tempo reduzindo
sua vulnerabilidade) quanto na redução do impacto da situação estressante, ou,
ainda através de ambos. Isso requer uma estratégia multifacetada e uma
perspectiva ampla dos sistemas direcionados a reduzir os múltiplos riscos de
uma crise, ao mesmo tempo aumentando os mecanismos de enfrentamento e de
adaptação nos níveis local, regional e nacional, envolvendo pessoas e
comunidades.
A resiliência pode ser aprendida e
desenvolvida por cada um de nós. As pessoas podem começar a construir a
resiliência a qualquer tempo, incluindo antes, durante e após uma situação
altamente estressante. Por que as pessoas diferem em como elas comunicam os
sentimentos e enfrentam a adversidade, há uma série de maneiras de construir
resiliência. Por exemplo, algumas pessoas encontram grande suporte e consolo em
suas famílias e comunidades, enquanto outras procuram isso fora, em colegas e
amigos próximos.
Uma compreensão mais profunda de resiliência e
fatores de risco oferece a chance de se desenvolver estratégias de ajuda e
padrões de enfrentamento (coping) específicos para cada cultura. A partir dessa
compreensão, as prestações de serviços clínicos e psicossociais necessitariam
ser adaptadas para que no futuro uma ajuda mais eficiente seja oferecida em
consonância com o background cultural da pessoa ou da comunidade. Por exemplo,
mesmo que um evento inicial não envolva saúde pública, disrupções sociais podem
levar rapidamente a múltiplos riscos, incluindo epidemias. Sistemas públicos de
saúde devem ser fortalecidos e sustentados, ambos para evitar o desastre e
responder à sua ocorrência. Capacitação para responder aos impactos de saúde
causados pelos desastres, especialmente em populações vulneráveis, deveria ser
uma parte integral dos serviços de saúde pública fortalecidos.
Resiliência contra desastres é baseada na
decisão dos indivíduos de compartilhar suas responsabilidades para a prevenção,
resposta e recuperação dos desastres. Eles podem fazer isso utilizando um guia,
recursos e políticas governamentais e outros recursos, como organizações da
própria comunidade.A resiliência contra
desastres das pessoas e das famílias é significantemente aumentada por um plano
ativo de preparação para proteger a vida e a propriedade, baseada numa
preocupação pelas ameaças relevantes para sua localidade. É também aumentada
quando se conhece e se está envolvido nos manejos da comunidade local para
prevenir desastres, principalmente envolvido como voluntário.
Os elementos de construção de resiliência
podem incluir: avaliação e monitoramento dos riscos de desastre, assim como sua
compreensão; sistema de alerta efetivo; estabelecimento de uma cultura de
responsabilidade pelas comunidades, incluindo setor privado e organizações
civis, para planejamento e cooperação na preparação, resposta e recuperação; planejamento
em longo prazo; investimento e aplicação de medidas preventivas, tais como
regras para uso do solo e para construção, e pesquisa e avaliação sobre fatores
de risco.
As ações para o fortalecimento da resiliência
precisam ser baseadas em metodologias potentes para a avalição de risco e de
vulnerabilidade. Essas avaliações deveriam servir como base para a elaboração
de estratégias de resiliência, assim como para o desenho de projetos e
programas específicos.
Pensando que uma comunidade seria um grupo
social, religioso, ocupacional, ou outros, que dividem características ou
interesses comuns ou percebem a si mesmas como distintas em algum aspecto da
sociedade onde se situa, podemos dizer que cada uma delas se estrutura de
determinada maneira, mesmo estando sob os mesmos aspectos sócio-culturais.
Assim, a capacidade para resiliência de uma
comunidade deveria ser desenvolvida em suas múltiplas formas, respeitando suas
características e possibilitando que ela ofereça um amortecedor para a dor, um
contexto para a intimidade e que sirva como repositório para tradições que unem
as pessoas. Além dessas características, o bom funcionamento sob estresse,
adaptação bem sucedida, autoconfiança e capacidade social também influenciam na
resiliência da comunidade. Construir resiliência comunitária envolve um
processo de ligar em rede uma série de capacidades adaptativas e essa ligação
organizacional ajuda a construir resiliência coletiva.
Comunidade resiliente é aquela que possui um
administrador competente e responsável, permitindo que a população participe e
decida sobre o planejamento de sua cidade, levando em conta suas capacidades e
recursos, garantindo uma urbanização sustentável com a participação de todos os
grupos populares. Isso permite que muitos desastres sejam evitados em função de
uma infraestrutura adequada (saneamento básico, drenagem) e serviços básicos
(escolas, coletas de lixo, serviços de emergências).
Por outro lado, muitos fatores conhecidos tem
aumentado a vulnerabilidade das comunidades para os desastres. Os estilos de
vida e de trabalho, mudanças demográficas, migração doméstica e a fragmentação
da comunidade estão aumentando sua suscetibilidade, assim como alterando as
redes sociais locais e a sustentabilidade de grupos de voluntários. Pressões
para que o desenvolvimento urbano se estenda para áreas de alto risco para
desastres naturais compõem o problema, assim como a expectativa de que os
mesmos serviços e equipamentos estejam disponíveis onde quer que se escolha
morar.As comunidades devem ter a
oportunidade de decisão com relação a seus planos sobre redução de riscos
(dividindo responsabilidades para compreender esses riscos, controlando seus
impactos e se preparando para o enfrentamento e recuperação). Igualmente,
algumas vulnerabilidades podem ser contrapostas em parte por fortalezas e
outras capacidades comunitárias.
Uma infraestrutura social
estabelecida inclui canais de informação, redes sociais e organizações
comunitárias. Instalações e processo sociais podem ser planejados e
desenvolvidos para prover grande suporte à comunidade. Através de treinamentos
e de informes de riscos as comunidades podem ser tornadas mais resilientes aos
desastres.
Virtualmente todo desastre é local, portanto,
há uma tendência a enxergar resiliência como uma questão local ou da
comunidade. Mas isso tem criado um problema maior para o desenvolvimento de
esforços de manejo do desastre baseado na resiliência no nível nacional. A
resiliência deveria ser vista como uma questão maior de importância nacional e
de política pública, assim como parte essencial dos processos de tomada de
decisão nos programas de manejo efetivo dos desastres.
Deve ser entendido que resiliência não deve
ser criada após o desastre para situar o problema. Muitas vezes, as pessoas
tendem a reconhecer problemas relevantes após o desastre, quando eles são
expostos pela mídia. O desastre demonstrou que os problemas essenciais – como a
demora em passar informações para as pessoas diretamente afetadas pelo desastre
– foram as maiores falhas do sistema atual. Esses problemas deveriam ser
situados com um programa de manejo de desastre baseado na resiliência, só que antes
do desastre ocorrer.
Algumas prioridades precisam ser identificadas e
colocadas em prática para se alcançar resiliência comunitária contra desastres:
a redução dos riscos para desastre deve ser uma prioridade local e nacional; é
preciso identificar, avaliar e monitorar os riscos a desastres e melhorar os
sistemas de alerta; é necessário usar de conhecimento, inovação e educação para
construir uma cultura de segurança e resiliência em todos os níveis; reduzir os
riscos subjacentes e fortalecer a preparação para os desastres para uma efetiva
resposta e recuperação em todos os níveis, do local para o nacional são tarefas
imprescindíveis.
Em face dos perigos e riscos é importante ter
panos e arranjos para prevenir, responder e se recuperar das emergências e
desastres. Esses planos, que deveriam ser preparados pelo menos no nível
municipal, devem ser desenvolvidos em conjunto com organizações de serviços de
emergências apropriadas. Esses planos devem ser abrangentes e estar
atualizados. Portanto: é preciso estabelecer mecanismos de organização e coordenação
de ações com base na participação de comunidades e sociedade civil organizada, incentivar
que os diversos segmentos sociais compreendam seu papel na construção de cidades
mais seguras com vistas à redução de riscos e preparação para situações de desastres,
elaboração de documento de orientação para a redução de riscos e a oferta de
incentivos aos moradores de áreas de risco: famílias de baixa renda,
comunidades, comércio e setor público, para que invistam na redução dos riscos
que vierem a enfrentar, investimento na criação de programas educativos e de
capacitação para a redução de riscos de desastres, tanto nas escolas como nas
comunidades locais.
LANDAU, J. & SAU L. Facilitando a
resiliência da família e da comunidade em resposta a grandes desastres. Pensando Famílias, nº4, ano 4, (56 -78) .
MAGUIRE, B., HAGAN, P. Disasters and communities: understanding social resilienceThe Australian Journal of Emergency
Management, Vol. 22 No. 2, May 2007